Inserida no Modernismo português, rompe com os padrões aceitos na época, uma vez que os sonetos - forma fixa utilizada - a preocupação com a métrica e a disposição dos versos não eram recursos muito apreciados. Possui um gênero próprio.
Florbela não se ligou claramente a qualquer movimento literário. Está mais perto do neo-romantismo e de certos poetas de fim-de-século, portugueses e estrangeiros, que da revolução dos modernistas, a que foi alheia. Pelo caráter confessional, sentimental, da sua poesia, segue a linha de Antônio Nobre, fato reconhecido pela poetisa. Por outro lado, a técnica do soneto, que a celebrizou, é, sobretudo, influência de Antero de Quental e, mais longinquamente, de Camões.
Destaca-se da geração a que pertence pelo fato de se expressar - num estilo pouco usual na literatura portuguesa – através da confissão.
O sofrimento, a solidão, o desencanto, aliados à imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito, constituem a temática veiculada pela veemência passional da sua linguagem. Transbordando a convulsão interior da poetisa pela natureza, a paisagem da charneca [*] alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas.
[*] charneca
vegetação xerófila que cresce nas regiões incultas e arenosas, caracterizada por arbustos e plantas herbáceas resistentes.
MOTIVO
A morte do irmão, Apeles Espanca (a quem Florbela estava ligada por fortes laços afetivos), num acidente com o avião que tripulava sobre o rio Tejo, em 1927, marcaram profundamente a sua vida e obra.
Florbela suicida-se três anos após a morte do irmão, 8 de dezembro de 1930. Coincidência? Esse dia foi sempre um marco na vida de nossa autora.
Quer conferir?
8 de dezembro de 1894, data de nascimento;
8 de dezembro de 1914, data do seu primeiro casamento;
8 de dezembro de 1930, data da sua morte.
ALERTA!!
Os seus três casamentos falhados, assim como as desilusões amorosas em geral e a morte do irmão, Apeles Espanca (a quem a ligavam fortes laços afetivos), num acidente com o avião que tripulava sobre o rio Tejo, em 1927, marcaram profundamente a sua vida e obra.
O seu suicídio foi socialmente manipulado e, oficialmente, apresentado como causa da morte, um «edema pulmonar».
Passei a vida a amar e a esquecer... Atrás do sol dum dia outro a aquecer [Inconstância]
Florbela Espanca, a maior poeta portuguesa e uma das maiores vozes femininas da poesia mundial, mostra sua intensidade em seus famosos lamentos:
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!... [Eu]
MANIFESTA A VOZ DA MULHER
A obra da Florbela “precede de longe e estimula um mais recente movimento de emancipação literária da mulher, exprimindo nos seus acentos mais patéticos a imensa frustração feminina das (...) opressivas tradições patriarcais.
”É fácil perceber os símbolos que Florbela escolheu para evidenciar as suas sensações. Nada foi deixado ao acaso. O exemplo mais flagrante é talvez o das cores. O roxo, o preto, o cinzento, que aparecem na maioria dos poemas:
Sombrios mensageiros das violetas,
Crisântemos de sangue, vós sois beijos!
Os amarelos riem amarguras,
Os roxos dizem prantos e torturas,
Há-os também cor de fogo, sensuais... [Crisântemo]
As papoulas sangrentas, sensuais... [O meu Alentejo]
Cores tristes que representam o luto, a morte e a solidão. O preto aparece ainda de outras formas, como em alguns títulos: Noturno, Noitinha. Sombra, Anoitecer. As flores aparecem também inúmeras vezes. Flores de cor roxa, como o lírio e o lilás que simbolizam igualmente a dor. Os próprios títulos dos poemas são à partida alusivos ao estado d'alma de Florbela, como por exemplo: Crucificada, Loucura, Deixai entrar a morte, Nostalgia, Saudades, O meu mal, Alma perdida, A minha tragédia, Tortura, Sem remédio e tantos outros exemplos que poderíamos dar.
Nesta obra, você, leitor, se depara com uma Poetisa melancólica, que deposita todo seu ar na poesia, questiona seus versos, e até o seu amor, diante do desprezo o amado.
Confira neste soneto:
Rasga estes versos que te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que as cinzas os cubra, que os arraste o vento,
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te meu corpo prometido à morte! [Volúpia]
Florbela deixa você, leitor, empolgado com cada final de seus sonetos, altamente intensos, ritmados, simples, uma das características da poetisa.
A poesia de Florbela se caracteriza pela recorrência dos temas do sofrimento, da solidão, do desencanto, aliados a uma imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito. A veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas suas próprias frustrações e anseios, é de um sensualismo muitas vezes erótico.
Eu quero amar, amar perdidamente!
[...]
Amar só por amar: aqui...além...
Mais este e aquele, o outro e toda a gente....
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente! [Amar]
Simultaneamente, a paisagem da charneca alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas, transbordando a convulsão interior da poetisa para a natureza [O meu Alentejo, Paisagem - Ó meu amado e lindo Portugal!].
Com a sua personalidade de uma riqueza interior excepcional, escreveu os seus versos com uma perturbação ardente, revelando um erotismo feminino transcendido, pondo a nu a intimidade da mulher, dando novos rumos à consciência literária nascida de vivências femininas.
Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente,
Mesmo a beijar-me a tua boca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Pousa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...
[...]
Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
É, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?
[O maior bem]
INTENSIDADE LÍRICA
Cultivou exacerbadamente a paixão, com voz marcadamente feminina sem que alguns críticos não deixem de lhe encontrar, por isso mesmo, um "dom-joanismo no feminino".
O sofrimento, a solidão, o desencanto, aliados a imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito, constituem a temática veiculada pela veemência passional da sua linguagem. Transbordando a convulsão interior da poetisa pela natureza, a paisagem da charneca alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas.
LINGUAGEM CONOTATIVA
COMPARAÇÃO
Sinto o teu coração que Deus talhou
Num pedaço de bronze luminoso,
Como um berço onde a vida me pousou.
[Trazes-me em tuas mãos de vitorioso]
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,
[O teu olhar]
METÁFORAS
O silêncio, ao redor, é uma asa quieta...
[Trazes-me em tuas mãos de vitorioso]
A minha dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
[A minha dor]
Os meus gestos são ondas de Sorrento...
[Conto de Fadas]
Toledo é um rubi. [Toledo]
E de manhã o sol é uma cratera, [A Voz da Tília]
As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
[O meu soneto]
SINESTESIA
[visão + tato]
Teus olhos, borboletas de ouro, ardentes
[Crepúsculo]
[visão + olfato]
Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
[Frêmito...]
EUFEMISMO
E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda...
[Supremo enleio]
PERSONIFICAÇÃO ou PROSOPOPEIA
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!
[Árvore do Alentejo]
FUNÇÕES DA LINGUAGEM
METALINGUAGEM
Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz, cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma...
Versos!... Sei lá! Um verso é o teu olhar,
Um verso é o teu sorriso e os de Dante
Eram o teu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante! [Versos]
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
[Tortura]
Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
[...]
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasgas os meus versos...
Pobre endoidecida!
[Os meus versos]
Na Enciclopédia Larousse, esta poetisa é definida como «parnasiana, de intenso acento erótico feminino, sem precedentes na Literatura Portuguesa.
Dizem os críticos que a polêmica e o encantamento de seus versos é devido à carga romântica e juvenil de seus poemas, que têm como interlocutor principal o universo masculino.
Utilizando formas tradicionais, quer a brevidade do soneto, quer a longa reflexão da epístola, confessa-se e se desmascara num ambiente intimista, evidenciando sentimentos contraditórios, traduzidos quer carnalmente, quer por estados de alma sujeitos à abnegação.
Antônio José Saraiva e Oscar Lopes na sua História da Literatura Portuguesa descrevem Florbela Espanca como sonetista de “laivos anterianos” e semelhante a Antônio Nobre. Admitem que foi “uma das mais notáveis personalidades líricas isoladas, pela intensidade de um emotivo erotismo feminino, sem precedentes entre nós [portugueses], com tonalidades ora egoístas ora de uma sublimada abnegação que ainda lembra Sóror Mariana, ora de uma expansão de amor intenso e instável(...)”
A Poetisa identifica-se completamente com a sua obra. Ela é a sua obra e a sua obra é ela e em quase todos os seus poemas existe uma prova flagrante dessa identificação absoluta. Florbela Espanca consegue transpor fielmente para o papel todo o seu mundo interior. É fácil perceber logo desde o início que a dor a persegue constantemente, fruto de amores impossíveis, fruto de dois filhos que ela não conseguiu trazer dentro de si e ainda de um Amor de Mãe que ela nunca conheceu. Mas também é fácil compreender a sua, talvez, incapacidade de superar essa mesma dor. Florbela exagera o seu sofrimento e, deste modo, esse exagero passa a ser uma realidade para ela. A poetisa possui como que uma predisposição para o sofrimento e por isso o cultiva, desenvolve-o, deixa-o crescer ainda mais dentro de si, escrevendo e referindo constantemente o passado, insistindo numa recordação saudosista exagerada.
"A obra de Florbela é a expressão poética de um caso humano. Decerto para infelicidade da sua vida terrena, mas glória de seu nome e glória da poesia portuguesa, Florbela viveu a fundo esses estados quer de depressão, quer de exaltação, quer de concentração em si mesma, quer de dispersão em tudo, que na sua poesia atinge tão vibrante expressão. Mulheres com talento vocabular e métrico para talharem um soneto como quem talha um vestido; ou bordarem imagens como quem borda missanga; ou (o que é ainda menos agradável) se dilatarem em ondas de verbalismo como quem se espreguiça por nada ter o que fazer, que dizer - naturalmente as houve, e há, antes e depois da vida de Florbela. (...) Também, decerto, apareceram na nossa poesia autênticas poetisas, antes e depois de Florbela. Nenhuma, porém, até hoje, viveu tão a sério um caso tão excepcional e, ao mesmo tempo, tão significativamente humano. Jorge de Sena dirá: tão expressivamente feminino." José Régio (in "Sonetos" de Florbela Espanca, Livraria Bertrand, Portugal, 19ª. ed. completa, 1981)
"Bíblia de iniciação amorosa, dicionário das vicissitudes da mulher, livro-de-horas da dor - assim é a poesia de Florbela Espanca. Dela emana um feitio insurrecto que tem escandalizado e encantado, desde 1930, seus leitores, quando, apenas depois de morta, a poetisa se torna (afinal) conhecida. (...)
A interlocução com o universo masculino e o exercício permanente do amor imprimem a tal obra uma continuada verrumagem acerca da condição feminina, que vasculha os ritos sociais, os jogos de sedução, os interditos, os privilégios - a maldição. Nessa rota, assenhorando-se do estatuto tradicional da mulher para pô-lo em causa, Florbela acaba retirando dele um corolário que o torna ativo, visto que redimensionado em bem literário.
E eis que o infortúnio, tomado na acepção de prerrogativa feminina, se converte, por seu turno, numa estética em que a dor é a matéria-prima, capaz de criar, apurar e transfigurar o mundo - única e verdadeira senda de conhecimento reservada à mulher.
(...) Florbela consegue, através dos seus poemas, o prodígio de transmutar a histórica inatividade social da mulher em... genuína força produtiva! E esse (a bem dizer) é apenas um dos seus muitos dons."
Maria Lúcia Dal Farra (in "Poemas de Florbela Espanca", Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, Brasil, 1ª. ed, 2ª. tiragem, outubro/97).