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Quando se ouvem os nomes de Palmares e de Zumbi,
logo lembramos da saga daqueles que lutaram pela
liberdade, em plena época da escravidão, nos tempos
coloniais. Zumbi foi o único líder de uma revolta escrava
a figurar entre os Grandes personagens da nossa
história, uma coleção que marcou época, lançada em
1969, no auge da ditadura em que vivia o Brasil. Único
herói popular da coleção, seu fim é descrito, no trecho
abaixo, como singular por ter atingido às pessoas mais
humildes:
“Zumbi está morto? A pergunta, como um vendaval,
varreu as vilas e povoações de Pernambuco, espalhou-
se pelos engenhos de cana, entrou nas fazendas
do interior das capitanias e chegou até terras mais
longínquas, onde negros fugidos viviam em pequenos
grupos. Os fazendeiros, satisfeitos, queriam a confirmação
da notícia. A morte de Zumbi poria fim à luta. Estaria afinal destruído o grande reino negro dos Palmares?
Se isso fosse verdade, os escravos não teriam
mais estímulo para fugir e os senhores de engenho poderiam respirar aliviados. Os negros — e mesmo
muitos brancos e índios — não acreditavam na morte
do Rei Zumbi. Não podia ser verdade, Zumbi não era
um homem comum e sim o deus da guerra, o mais
poderoso dos gênios, irmão e dono do mar. E viera à Terra
para chefiar a luta dos negros libertos e dar esperança
aos ainda cativos. Por isso, diziam os negros, Zumbi
era imortal. Mas alguns garantiam que Zumbi já fora
derrotado; tanto falavam que os negros começaram a
ficar em dúvida. Nos alojamentos de escravos em todo
o Nordeste, durante a noite, feiticeiros se ajoelhavam
para rezar.
— Zumbi, Zumbi, oia Zumbi! Oia muchicongo.
Oia Zumbi.
E outros respondiam, em coro:
— Zumbi, Zumbi, oia Zumbi!
Era o canto cerimonial da ressurreição. Se Zumbi
morreu, o cântico mágico poderá restituir-lhe a vida.
Se não está morto, mas corre perigo, a reza o ajudará a
salvar-se. Durante noites e noites, a música triste se
elevou nas senzalas.”
Imaginemos a impressão que tais palavras gerariam em
leitores amedrontados pelas trevas de um regime de
opressão que não admitia contestação. A morte de Zumbi
e a derrota de Palmares não podiam deixar de serem
sentidas como metáfora para a situação daquela época.
Não podia escapar ao leitor a alegria dos poderosos contrastada à tristeza de muitos, da gente trabalhadora;
nem tampouco o historiador que supervisionava a
coleção, Sérgio Buarque de Holanda, tinha outro interesse.
Em certo sentido, vivemos, em pleno século XXI,
sob imagens de Palmares forjadas naquela luta por um
passado que servisse de arma para libertação no presente.
As condições, nesses mais de 30 anos, contudo,
mudaram — por um lado bastante, por outro muito
pouco. A liberdade foi restaurada, o poder civil restabelecido,
a censura do estado não existe mais, podemos
dizer e pensar o que quisermos. O medo não é onipresente,
como àquela época. Por outro lado, as desigualdades
sociais seculares não se atenuaram, as hierarquias
não se enfraqueceram, as estruturas patriarcais e oligárquicas
tampouco.
Como tratar de Palmares hoje? Seria possível desvencilhar-
se dessa miragem e deixar de vê-lo como uma
resposta às nossas angústias atuais? Estaríamos nos
iludindo se disséssemos que nosso ponto de vista, à
diferença dos anteriores, é o mais objetivo e o mais
próximo da realidade, neutro e distante de nossas
próprias experiências e expectativas. Já dizia o historiador
francês George Duby que construímos nossa Grécia
e nossa Roma a cada momento, e não seria diferente
com Palmares, um símbolo tão potente — seja para
aqueles que defendem a ordem social seja para os que
a contestam. Não nos podemos subtrair da historicidade
de nossa própria condição, interesses e pontos de vista. Este livro parte de uma perspectiva crítica e
participativa. Pressupõe que apenas o exame crítico dos
argumentos pode produzir o conhecimento autônomo
do leitor, que participa como formulador de suas próprias
idéias sobre os diversos temas e abordagens tratados
e contrastados.
Há muitas maneiras de estudar o passado. Neste
livro, partimos do pressuposto de que o leitor deve ter
acesso a uma variedade de interpretações, ainda que
sempre fique claro, como se verá, qual a perspectiva
que adotamos. Em seguida, não cremos que se possa
estudar o passado sem discutir duas questões: as fontes
históricas de que dispomos e as teorias sociais que
podemos agenciar na interpretação delas. Para o estudo
de Palmares, dispomos de duas categorias de fontes:
literárias ou documentais e materiais ou arqueológicas.
Trataremos, portanto das especificidades e características
dessas duas categorias. Para o estudo das sociedades,
pode-se usar uma variedade de modelos antropológicos
ou sociológicos — e em particular no que se refere a
sociedades rebeldes como Palmares. No final, caberá
ao leitor formar seu próprio juízo.
Palmares: o que se sabe. Os portugueses, em sua reconquista
das terras ibéricas ocupadas pelos muçulmanos,
avançaram sobre a costa africana já no início do século
XV, tomando Ceuta, um importante entreposto no
Norte da África, em 1415. Nos decênios seguintes,
PEDRO PAULO FUNARI E ALINE VIEIRA DE CARVALHO
continuaram sua exploração do continente e das ilhas
atlânticas, com o início da plantação de cana-de-açúcar
e do uso da mão-de-obra escrava africana. Quando
desembarcaram no continente americano, tinham já
em mente a sua exploração nos mesmos moldes, e logo
tentaram plantar a cana em São Vicente, ao sul, mas
sem grandes êxitos. Melhores resultados tiveram na
região mais ao norte, entre Salvador e Recife, principalmente
a partir de 1570, com a implantação de
fazendas e usinas que se utilizavam tanto dos chamados
negros da terra, os indígenas, como os negros de Guiné,
vindos da África. Em 1580, Portugal foi incorporado
à Espanha e, ainda que a administração colonial se
mantivesse separada, a colônia portuguesa ficou mais
distante das preocupações da metrópole.
No início do século XVII, temos as primeiras referências,
nos documentos, a escravos fugidos que formam
uma comunidade na área dos Palmares, na região
serrana a cerca de 60 quilômetros da costa do atual
estado de Alagoas, por volta de 1605. Já em 1612,
Palmares adquire grande fama, e os colonizadores mandam
uma expedição punitiva, sem sucesso. O agrupamento
cresceu continuamente, e a entrada dos holandeses
em 1630 iria, em certo sentido, favorecer o
assentamento de refugiados, pois os invasores e os
portugueses estariam ocupados uns com os outros. Em
1640, os holandeses viam Palmares como “um sério
perigo”. Mandaram Bartolomeu Lintz para obter informações sobre o quilombo, que foi descrito como
composto de dois grandes assentamentos: uma aldeia
grande na Serra da Barriga e uma menor à margem
esquerda do rio Gurungumba. Quatro anos depois,
Rodolfo Baro liderava forças holandesas no ataque à
comunidade, onde viveriam seis mil pessoas, tendo
sido mortas cem e capturadas 31, dentre as quais sete
indígenas e crianças mulatas. No ano seguinte, Jürgens
Reimbach atacava Palmares, descrito já como composto
por nove aldeias.
Com a expulsão dos holandeses em 1654, os portugueses
começaram a atacar o quilombo, em expedições
modestas e infrutíferas. Em 1667, os quilombolas começaram
a atacar fazendas para conseguir armas, libertar
escravos e vingar-se de senhores e feitores. Em 1670,
o governador de Pernambuco denunciou os colonos
que passavam armas de fogo para os habitantes de Palmares,
em desrespeito a Deus e às leis. Os ataques a
Palmares continuaram e, em 1675, na campanha de
Manoel Lopes, Zumbi se destacava como líder dos
rebeldes, mas o governante era seu tio Ganga-Zumba.
Em 1677, segundo documentos, Palmares compreenderia
mais de 60 léguas e dez aldeias. Em 1678, Fernão
Carrilho capturou os dois filhos de Ganga-Zumba. Em
Recife, embaixadores do quilombo e as autoridades
estaduais subscreveram um tratado de paz. Zumbi não
confiava nas autoridades; revoltou-se, matou seu tio e
proclamou-se rei de Palmares. Os ataques portugueses
intensificaram-se nos anos seguintes, sem sucesso, até
que o paulista Domingos Jorge Velho ofereceu-se para
conquistar os índios de Pernambuco, em 1685, o que
abria as portas para sua atuação, também, no combate
aos escravos fugidos e agrupados em Palmares. Os
colonos ainda insistiram em contar com as forças locais,
sem êxito, e começaram a perseguir mais intensamente
aqueles que colaborassem com os fugitivos.Dois anos depois, Jorge Velho e o governador de Pernambuco
chegaram a acordo para a destruição de Palmares.
Em 1694, o paulista, à frente de sua tropa de índios
e mamelucos, conseguiu, em fevereiro, destruir o quilombo;
no ano seguinte, Zumbi foi encontrado, morto
e exposto em praça pública. Palmares deixava de existir,
mas sua imagem não seria mais esquecida, rememorada
a cada novo momento, por diferentes grupos sociais e
de diferentes modos, como veremos. |